A nossa Criança Interior

O João e a Maria têm uma filha de 4 anos, a Joana (personagens fictícios). São um casal normal e tranquilo. Por vezes surgem discussões (aparentemente normais dentro de um casal), aquelas discussões do dia a dia, mas que vão desgastando a relação. Maria é mais consentida, tenta ao máximo evitar as discussões, mais sensível á consciência da filha. João o “mimalhão” da filha, adora dar-lhe tudo, inclusive mostrar (inconscientemente) a sua insensibilidade para com a mãe!
Um Dia e a gota de água
Certo dia, Maria vai ás compras, e quando chega a casa e começa a arrumar os itens, João perde a cabeça e o mundo desaba. Maria tinha se esquecido das suas batatas fritas preferidas! Neste dia a discussão fica mais acesa que nunca. João acusa Maria de nunca lhe dar atenção e de estar sempre a esquecer-se dele, e Maria explode, após anos e anos de discussões reprimidas, Joana refugia-se no quarto. Ponderam até acabar a relação. (A continuar num próximo artigo…)
Nesta história, quem é a criança?
Esta pergunta fica no ar, para si que está a ler este artigo, mas só precisa de a responder no fim. Neste artigo vou lhe falar da sua “Criança Interior”.
O que é a Criança Interior?
Desde o “nosso” útero materno até aos nossos 7 anos de idade somos um ser humano em construção. Fisicamente, mentalmente, e emocionalmente, vamos adotando estruturas, referências e mecanismos socioculturais á nossa volta. Inclusive todas as nossas histórias, acontecimentos e sucessão de eventos vão moldando a nossa perceção sobre como nos vemos a nós, os outros, e o mundo.
Todas estas experiências têm um especial impacto simplesmente porque são as primeiras experiências, primeiro com os nossos pais, depois com a família e mais tarde com os outros, e inclusive toda a dinâmica sociocultural. Peço-lhe para se colocar neste momento, no papel de uma criança, nos olhos dela. Exatamente. Tudo lhe parece gigante.
Existem fases e ciclos de vida que têm de ser correspondidos desde que somos bebés, até entrarmos na adolescência. Cada fase que surge, vamos aprendendo e correspondendo com as aprendizagens da fase anterior e assim sucessivamente, formando um conjunto de mecanismos de atuação, fase após fase.
Por fim, quando chegamos á fase adulta, trazemos o nosso “mochilão” de crenças, valores, significados e experiências, todo um sistema programado pela nossa própria experiência em relação ao mundo. Assim sendo, esta bagagem vai-nos acompanhando até á velhice. A boa noticia é que podemos tirar ou colocar bagagem do nosso “mochilão” sempre que nos apetecer, mas, contudo para isso teremos de ser adultos, e enfrentar os nossos “erros de programação”
Quando ocorrem os “erros de programação”
Dentro de todas as fases e ciclos desde que estamos no útero até á nossa adolescência existem pelos menos quatro necessidades psicológicas básicas que devem ser correspondidas segundo a psicóloga Stefanie Stahl:
- Necessidade de criar vínculos
- Necessidade de autonomia e segurança
- Necessidade de sentir prazer ou evitar a dor
- Necessidade de reforçar a autoestima e o reconhecimento
Quando um destes códigos é violado ou simplesmente ignorado, para uma criança que simplesmente ainda não tem recursos para tal enfrentamento, cria então uma série de mecanismos de proteção e maneiras de agir perante si e os outros.
Imagine uma mulher grávida que está permanentemente sob estados de stress? Como se sentirá o bebé (futuramente adulto) em relação á sua casa?
Imagine os pais que oprimem constantemente as suas crianças de se afirmarem? Possivelmente elas vão aprender que é preferível conter a sua irritação (como a Maria por exemplo).
Já não falando em casos algo traumáticos, as crianças que reprimem muitos sentimentos de dor, raiva, tristeza e mágoa, possivelmente em adultos, irão trazer crianças muito magoadas, tristes e raivosas dentro de si, enfim estes possivelmente serão os adultos mais infantilizados (esperemos que a joana não) .
Quando um adulto permanece infantil
Ora se já não tinha reparado, existem adultos em que isso se torna demasiado evidente, não é? Isto é, quando o lado criança se sobrepõe ao lado adulto atingindo a disfuncionalidade.
Mesmo assim, existem mesmo pessoas que embora adultas e funcionais, em situações ditas sem qualquer problema, inconscientemente e mesmo que remotamente, essa situação transporte esse adulto para um estágio de criança enraivecida e/ou magoada (como o caso do João).
Resgatar a nossa criança interior
Mas sendo assim, como todos nós em certo nível, passamos por situações idênticas, precisamos de tratar e resgatar a nossa criança interior? A minha resposta é sim!
Pela minha experiência como profissional, existem, e sempre existirão conflitos por resolver e crenças por alterar, mesmo se já somos adultos o suficiente, contudo queremos sempre passar para a fase seguinte.
Se ainda permanece uma criança conflituosa dentro de nós, então um trabalho psicoterapêutico é mesmo necessário.
Se este tipo de situações persistem na sua vida e nas suas relações, então convém resgatar e cuidar a sua criança interior já. Tais situações são:
- Baixa Auto Estima, sensação de não saber quem é, sensação de separação com os próprios sentimentos, sensação de não saber o que se quer, ou de que precisa para se sentir completo
- Relações de dependência e codependência, procurando a sensação de identidade no exterior, seja em relações humanas ou em vícios, como comportamentos impulsivos e desregulados como jogo, sexo ou compras, entre outros.
- Comportamentos irresponsáveis e/ou impulsivos causando o próprio sofrimento e aos outros
- Dificuldade em estabelecer limites saudáveis para si e para os outros (saber dizer não)
- Dificuldades em lidar com os próprios erros e os dos outros, levando a crenças disfuncionais sobre si e sobre os outros (neste caso estão incluídas mentiras para mascarar os próprios erros)
- Busca incessante por amor, afeto, e atenção vindos do exterior em termos de relações, nunca sendo suficiente, independente de quem ou de como (relações abusivas)
- Dificuldade em estabelecer relações de confiança duradouras. Seja pelos dois extremos: Ou nunca se confia em ninguém ou as relações são demasiado superficiais, acabando rapidamente.
- Dificuldade em lidar com a vergonha tóxica, isto levado pelas crenças de “não sou suficiente” ou “ sou defeituoso”. Também levado aos dois extremos como anorexia ou bulimia, ou pessoas já de si bonitas mas que utilizam elementos de beleza extremos, como cirurgias.
- Dores no corpo e casos fibromiálgicos persistentes, sem causa orgânica ou funcional, problemas gástricos, dores de cabeça, costas e artrite. A propensão para ter acidentes e quedas também significa um sinal de alerta.
- Vitimização e culpabilização de tudo e todos, pelos próprios fracassos e acontecimentos
- Personalização de super herói, querendo salvar tudo e todos, independentemente da sua própria pessoa e/ou vida (estas pessoas normalmente carregam o mundo ás costas)
- Quadros de depressão crónica e resistente, e ansiedade generalizada
- Procrastinação e pouco Autocontrolo
Como podemos então contactar e resgatar a nossa criança interior?
Através de um trabalho psicoterapêutico efetivo e consistente conseguimos ter contacto com a nossa criança interior, embora nem todas a correntes vindas da psicologia abordam esta questão. Carl Jung e a psicologia analítica foram os primeiros a fazer este estudo. George Grodeck (psicossomática) frisou mesmo que todas as doenças, advêm de um conflito emocional infantil. A Hipnoterapia aborda significativamente esta questão através de exercicios específicos.
Embora, também nem todas as pessoas estejam preparadas para enfrentar a dor, novamente. Contudo todo o trabalho, tem de ser estruturado e centrado na pessoa.
Contudo é de salientar que os próprios terapeutas também têm uma criança interior mais ou menos bem trabalhada. A terapia basicamente funciona bem sendo de adulto para adulto. O terapeuta (mais treinado em acessar e resgatar a sua criança interna) ajuda o paciente (adulto) a acessar a sua criança interna. Quando existe uma dinâmica de terapeuta “paternal” a ajudar um paciente “criança”, acha que a terapia funcionará?
“A primeira pessoa a ser tratada, é o terapeuta”
George Groddeck
Chegando á sua criança interior
Descrever-lhe-ei de seguida um exercício muito simples para chegar á sua criança interior. Empodere-se e ganhe coragem, pois muitas vezes não é fácil, existem crianças muito magoadas dentro de nós. Uma pessoa muito infantilizada, simplesmente vai negar estes exercicios, exatamente porque, não tolerará novamente a dor. Uma criança nunca consegue cuidar de uma criança, apenas um adulto consegue. Nesse caso recorra a ajuda profissional.
- Encontre um lugar calmo e tranquilo, onde esteja sossegado/a
- Respire fundo e relaxe
- Recorra a memórias da sua infância durante alguns minutos colocando uma das mãos no coração
- Se necessário recorra a uma fotografia da sua infância
- Tente relembrar-se dos momentos mais difíceis
- Quando reencontrar momentos difíceis, diga estas frases para si próprio/a:
“Eu estou seguro/a, sendo eu próprio/a”
“Tu estás seguro/a agora”
“Está tudo bem em sentires medo, eu estou aqui, entendo-te e protejo-te”
“Tu não precisas de ser o que não és para agradar os outros, e eu também não preciso de ser assim”
“Os nossos pais são seres humanos também com feridas vindas do passado, e podem inconscientemente ter projetado os seus traumas em nós, vamos perdoá-los?”
“Eu amo-te, eu me amo, estamos seguros agora”
Estes exercicios podem gerar muitas emoções, por isso não tenha pressa. Guarde para outro dia e explore outras memórias.
“Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta”
Carl Jung
Continue a contactar a sua criança interior
Assim sendo divirta-se e explore o que não conseguiu explorar em criança, compre aquele doce, reencontre aquele brinquedo, nem que seja para oferecer, brinque com os seus filhos e explore as suas brincadeiras, sendo um deles, na hora de voltar a ser criança, seja. Contudo quando voltar a ser adulto, seja um adulto saudável, e não uma criança entre adultos.
“Os que não encontram um lar dentro de si, jamais descobrirão um lar no exterior. E não podem dizer que caíram numa armadilha.”
Stefanie Stahl